Pesquisar este blog

Páginas

terça-feira, 27 de outubro de 2009

ALTERIDADE

http://www.evirt.com.br/colunistas/mauricio08.htm- ACESSO 06/09/2008


Maurício da Silva
ALTERIDADE E CIDADANIA

A palavra alteridade, que possui o prefixo alter do latim possui o significado de se colocar no lugar do outro na relação interpessoal, com consideração, valorização, identificação e dialogar com o outro. A pratica alteridade se conecta aos relacionamentos tanto entre indivíduos como entre grupos culturais religiosos, científicos, étnicos, etc. Na relação alteritária, está sempre presente os fenômenos holísticos da complementaridade e da interdependência, no modo de pensar, de sentir e de agir, onde o nicho ecológico, as experiências particulares são preservadas e consideradas, sem que haja a preocupação com a sobreposição, assimilação ou destruição destas. “Ou aprendemos a viver como irmãos, ou vamos morrer juntos como idiotas”(Martin Luther King).A prática da alteridade conduz da diferença à soma nas relações interpessoais entre os seres humanos revestidos de cidadania. Pela relação alteritária é possível exercer a cidadania e estabelecer uma relação pacífica e construtiva com os diferentes, na medida em que se identifique, entenda e aprenda a aprender com o contrário.“Olhe para os dedos de sua mão. Eles são diferentes. Ainda bem. Exatamente por serem diferentes eles são harmoniosos quando vistos em conjunto. Já imaginou se eles fossem todos iguais?Certamente teríamos dificuldade de fazer o que fazemos de maneira tão natural. A humanidade, pode-se dizer, é semelhante a uma mão. Somos diferentes numa família. Somos diferentes numa região. Somos diferentes numa nação. A diferença é inerente, portanto, à natureza humana. Que bom que assim seja.”(Carlos Pereira).Devido ao fenômeno da hipertrofiação do ego do ente humano, o homem tem demonstrado, ao longo de sua história, ser incapaz de reconhecer e conviver pacificamente com o diversificado, com o pluralizado. Em função da inalteridade e da anticidadania, o homemóide tem ampliado a violência generalizada, as guerras, os movimentos de intolerância, as antipatias mecânicas gratuitas, os atos de separatismos, o nefasto racismo, a exclusão, o ódio, a intolerância, a discórdia, o desequilíbrio ecológico e o seu próprio desequilíbrio. Qual seria a saída de estado caótico de da existência no Planeta Terra? Formar o educando em valores de alteridade e cidadania, consoante o paradigma gnoseolístico.Ao se deparar com o diverso devemos, inicialmente, retirar da mente os agentes psicológicos do preconceito e da preocupação, isto é, aqueles julgamentos pré-concebidos, que e entram em ação desnecessariamente antes do tempo e aqueles trazem uma ocupação negativa espaço mental antecipada, com perda de energia. Devemos acabar com todo tipo de pré-conceito colocar a mente em branco para receber o conteúdo do outro sem uma opinião previamente formada. Faz necessário estar em estado de alerta percepção para entender os motivos pelos quais o outro concebe as coisas do seu jeito, estabelecer uma relação empática com o interlocutor, para finalmente, construir o ensino-aprendizado na relação, ampliar a capacidade de correlação, de interdependência, de entendimento e convivência fraternal.No Terceiro Milênio, as práticas da cidadania e da alteridade são fundamentais diante da globalização das experiências, do ambiente plural diversificado pela globalização das relações e facilidade nas comunicações. Imprescindível até pelo clima conflituoso que cresce entre os povos. O Dr. Samael sempre dizia que quanto maior for adversidade, maior será a oportunidade de crescimento. Não temos mérito nenhum em tratar bem a que nos trata bem também, mas sim em tratar bem a quem nos trata mal. Pela relação de alteridade é possível tratarmos bem a todos, independentemente de como nos tratam. O crescimento é eminente quando lidamos com aqueles que pensam, sentem e agem diferentemente da gente, numa relação alteritária. Numa relação alteritária se torna possível estabelecer uma convivência solidária entre os aparentes divergentes. É necessário sepultar de uma vez por toda os agentes da inalteridade e da anticidadania que tanto infelicitou a humanidade nos tempos da inquisição, dos regimes autoritários, das ditaduras, etc., que muitos homemóides ainda tentam ressuscitá-los das mais diversas formas.Não há princípios de alteridade naqueles que não aceitam a dissidência de antigos companheiro, que não aceitam a oposição deliberada, a opinião, o ponto de vista diferente e adota-se uma postura de discriminação, trata o diferente com a indiferença não adota a tolerância como princípio básico de mediação das relações interpessoais. Não é um cidadão alteritário quem não consegue amar a natureza, os seres vivos e aos outros, que repudia o seu irmão simplesmente por ele possuir uma visão diferente de enxergar o mundo, de ver a mesma realidade.Devido ao ego hipertrofiado do ente humano, por estes tempos há ausência de compreensão, ausência de cidadania, ausência da prática alteritária na família, na escola e na sociedade. Temos que viver e ensinar aos educandos a ampliar o relacionamento pela prática do alteritarismo e não pelo autoritarismo.Eis que é chegada a hora de nos mobilizarmos para o exercício da cidadania auteritária, dar-nos as mãos a todos, aos diferentes e aos iguais. “Compreender que apenas a diferença é que verdadeiramente soma”. “Você pode pensar que eu sou um sonhador. Mas eu não sou o único”.Na família, na escola e na sociedade devemos ensinar ao educando, através do exemplo, o principio da alteridade, como o vetor norteador das relações interpessoais, para que possa eliminar de sua psique os agregados psicológicos inumanos da xenofobia, da aversão a pessoas e coisas estrangeiras, do racismo, para evitar o ódio e as guerras étnicas, dos preconceitos de idades e de classes sociais, dos estigmas, da discriminação,etc. E para ensinar precisamos ser a alteridade em si, fazermos como fez o nosso mestre, que vivenciou a alteridade e nos ensinou assim: “Fazei aos outros aquilo que queiras os outros façam a ti”. Se pautarmos em nossas vidas pelas relações de alteridade, jamais iremos fabricar armas, material bélico e tudo aquilo que ceifa a vida de qualquer coisa do cosmo, que holisticamente coexistem interdependentemente conosco. Pois na relação de alteridade sentimos como se fossemos o outro, sentimos bem com o bem estar do outro e sofremos com a angústia do outro. Devemos saber colocar no lugar do outro, em qualquer situação, para compreende-lo integralmente. Se possuirmos nenhuma sensibilidade pelo outro, pelas coisas da natureza, é porque não somos revestidos de alteridade, não sabemos conviver com a pluralidade.Alteridade seria, portanto, a capacidade de conviver com o diferente, de se proporcionar um olhar interior a partir das diferenças. Significa que eu reconheço o outro em mim mesmo, também como sujeito aos mesmos direitos que eu, de iguais direitos para todos, o que também gera deveres e responsabilidades, ingredientes da cidadania plena. Desta constatação das diferenças é que gera a alteridade, alavanca da solidariedade, da responsabilidade, eixo da cidadania. Os educandos da escola convencional antropocêntrica têm sido mecânica e continuamente condicionados a manterem-se extremamente fixados na valorização das suas diferenças individuais direcionadas para o robustecimento do individualismo. Daí a necessidade de educá-los para paz em valores de alteridade e cidadania. A alteridade gera a tolerância e busca uma solução, de preferência de imediato, para um problema que atormenta nossos semelhantes e busca um caminho a ser seguido, principalmente com vistas a evitar sua repetição no futuro. A verdadeira cidadania na família, na escola e na sociedade consiste aceitar as diferenças dos outros e engendrar esforços para ajudar na superação de suas dificuldades. Os agregados psicológicos da intolerância levam o anticidadão a incapacidade de perceber o outro e o universo de inter-relações sociais e culturais determinantes de uma dada situação que exige um culpado para satisfazer um erro. 0 estado de intolerância é apoiado em na ignorância de anticidadãos que buscam os menores pretextos para justificação de seus atos de maldade. A simplicidade dos sábios, a sabedoria dos silenciosos, a tolerância dos pacificadores, a alteridade e a solidariedade dos cidadãos, etc., são reais valores da Cultura da Paz e Não-violência. O movimento da cidadania deverá crescer muito no Séc. XXI, através das pessoas que valorizam o diálogo, a alteridade, e acreditam que o respeito na diversidade e a perfeita correlação entre os direitos e os deveres se constituem nas bases da verdadeira Cultura da Paz e Não-Violência. Através da alteridade e dos demais valores de cidadania, os construtores da paz buscam educar os educandos para aceitarem e aprenderem com os que são e pensam diferentes; construir a fraternidade, a solidariedade e cidadania sempre, em qualquer lugar, apesar das divergências e das adversidades, respeitando-as sempre e procurando aprender com as diferentes opiniões; pois assim como a biodiversidade se constitui na maior riqueza ambiental, a diversidade de opiniões e enfoques se constitui na mais rica oportunidade de crescimento pessoal.Alteridade é uma palavra que vem ganhando uso acentuado nos meios sociais do século XXI, entretanto a palavra em si não serve para nada, se não for acompanha da praticada em si mesma. De nada adianta falar em alteridade, se tivermos em nosso interior o estado de alteridade. Esse vocábulo alteridade é relativamente novo, tanto é que nem os dicionários o registra, mas a ação que ele descreve nasceu com a humanidade e atualmente seu significado denomina uma nova mentalidade holística, que deverá vigorar na civilização deste século, certamente, irá transformar a Terra num mundo de regeneração porque se refere à aceitação das diferenças; também significa a não-indiferença, o aprender com os diferentes, o amar ou ser responsável pelo outro, aceitando e respeitando as suas diferenças.Alteridade é uma palavra que designa em sua profundidade o holismo presente nas leis de convívio entre os seres humanos revestidos de cidadania e na relação destes com todos os seres da natureza. A pessoa alteritária é mais fraterna em todos os sentidos, deixa de criticar, julgar, agredir, infligir leis e normas e passa a ser responsável pelos deveres e obrigações. Quem é altério trilha o caminho da não-agressão, do não-julgamento, luta pela paz de seus semelhantes, por estar em paz consigo mesmo, com a humanidade, com a vida. Ao desenvolvermos a alteridade, nasce o respeito pela maneira de ser dos outros, levando-se em conta que todos somos seres em diferentes, com graus de compreensão diferente.Já adentramos no Terceiro Milênio carregando conosco os velhos dilemas da humanidade. Chamamos de modernidade ao processo de complicação da humanidade, estamos convencidos de sermos muito superiores às gerações passadas, o que é um equívoco. Construímos o império da razão, mas destruímos os valores do coração. A racionalidade e o progresso científico-tecnológico invade os diversos âmbitos de nossa existência, mas a irracionalidade está presente na forma de inconsciência. Para que algo seja verdadeiro deve ser abençoado com o título de que está cientificamente demonstrado.
Nas nossas sociedades contemporâneas, onde impera a inalteridade, a racionalidade, sob as formas de ciência e tecnologia, no paradigma antropocêntrico, passou a ser instrumento de violência estrutural, no modelo social hegemônico neoliberal, onde se expressa como meio mais eficiente de dominação social, de controle ideológico, de exploração, de exclusão das maiorias economicamente desfavorecidas.O sistema antropocêntrico, por intermédio da violência estrutural, vai produz vítimas de modo massivo. As vítimas da racionalidade do sistema vão ficando num beco-sem-saída. O sofrimento das maiorias excluídas ecoa pelas ruas das favelas, dos vilarejos. Mas a alteridade faz-nos adotarmos a perspectiva do olhar das vítimas, para através da cidadania profunda engendrarmos ações que nos levam a lutar para mudanças neste estado de coisa.Os mecanismos do sistema neocapitalista antropocêntrico engendra o sofrimento as grandes maiorias de excluídos. Para este sistema anticidadão inalteritário, o outro (alter) é totalmente destituído de vida, é coisificado, reduzido a um número, a uma estatística, a um elemento do consumo. Então, para este sistema perverso, o outro não tem configuração humana, uma vez que ele é objetivado para fins de lucratividade, produtividade, uso, etc. O sofrimento indescritível das vítimas da violência estrutural do poderio econômico; elas possuem uma alteridade irredutível que desmascara a hipocrisia neoliberalismo econômico. A alteridade das vítimas, diante das evidências, não pode ser negada nem reduzida ao silêncio através da propaganda enganosa do sistema capitalista antropocêntrico. A da tão propalada pseudoneutralidade científico-tecnológica fica evidente ante a dor humana das vítimas denunciam esta legitimações ideológicas dos modelos sociais que proclamam a necessidade do crescimento material a custa do sofrimento humano, da existência massiva de excluídos, das vítimas da violência estrutural. A cidadania, a ética e alteridade se constituem no tripé do paradigma holístico, no modelo, no referencial para qualquer modo de convivência humana. Elas devem ser construídas na família, na escola e na sociedade, para nortearem todo o protagonismo juvenil na construção dos futuros projetos político-econômicos e todas as dinâmicas sociais e institucionais. Elas devem constituir na base de detecção e de ação para erradicação do sofrimento das vítimas. Um cidadão alteritário possui um compromisso inadiável para com as vitimas da violência estrutural, no que se diz respeito ao seu grito por dignidade humana.A cidadania, a ética e a alteridade se constituem na base de sustentação do homem íntegro, cuja preocupação com o seu semelhante se constitui no autêntico imperativo ético, no dever ser absoluto, que emerge do clamor irredutível das vítimas indefesas da violência estrutural para serem reconhecidas na sua dignidade humana.“Nunca deixo de pensar naqueles que sofrem, e junto com eles caminho solidário” (Oscar Neimayer).

Maurício da Silva é Professor e criador do Projeto Mundial Cultura da Paz e Não-Violência, do Movimento Vivavida Com Paz (MOVIPAZ) e autores de vários livros, entre os quais: "Violência nas Escolas, Caos na Sociedade" e "Violência, o Desafio da Paz" Disponíveis na EVIRT.




http://www.urutagua.uem.br//ru18_mtrag.htm -ACESSO DIA 05/09/2008



Ano I - Nº 01 - Maio de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178

Maurício Tragtenberg: Identidade e alteridade
Antonio Ozaí da Silva

“Tolerar a existência do outro,
E permitir que ele seja diferente,
Ainda é muito pouco.
Quando se tolera,
Apenas se concede
E essa não é uma relação de igualdade,
Mas de superioridade de um sobre o outro.
Deveríamos criar uma relação entre as pessoas,
Da qual estivessem excluídas
A tolerância e a intolerância.”
(José Saramago)
“A fim de imaginarmos, de forma aproximadamente precisa, determinada pessoa, temos antes de mais nada de estudar a sua época, fase em que podemos até mesmo ignorá-la, para depois, a ela retornando, encontrar o maior agrado na sua comtemplação.”
(Carta de Goethe a Karl Friedrich Zettei)
“O que eu sou é o que me faz viver.”
(Shakespeare, Henrique III)
“Ante os fatos nem rir, nem chorar, mas compreender.”
(Baruch Espinosa)

“Só não há poder sobre os mortos”
(Walter Benjamin)

Introdução
Em Homens em Tempos Sombrios, Hannah Arendt descreve os estilos de elaboração biográfica. De um lado, temos a biografia própria dos grandes estadistas, que se tornou o gênero clássico:
“Extensa e meticulosamente documentada, densamente anotada e generosamente entremeada de citações, geralmente aparece em dois grandes volumes e conta mais, e mais vividamente, sobre o período histórico em questão do que todos os livros de história mais importantes.” (ARENDT, 1999: p.37)

É a biografia definitiva! Nela, o tempo histórico amalgama-se à vida do biografado: o resultado é a fusão completa da vida e do mundo. É o estilo inglês que retrata os ilustres personagens que marcaram épocas igualmente notáveis.
Como assinala Arendt, este estilo biográfico não é adequado àqueles cujo principal interesse está precisamente na sua história de vida, ou seja, em relação aos homens e mulheres que, embora geniais, não se encontram tão vinculados ao mundo. Nestes casos, a inserção no mundo, isto é, a história temporal, torna-se muito mais o “inevitável pano de fundo” que realça a vida do biografado. Aqui, o que dá sentido e significado à biografia é principalmente as obras: os “artefatos” que os biografados “acrescentaram ao mundo.” (id.)
Arendt questiona se a biografia detalhista, essencialmente técnica, consegue fornecer aos leitores um quadro fiel da real dimensão humana do biografado. Sua crítica atinge mesmo o âmago do método inscrito no estilo inglês de biografar. Para ela, “ver a história sob a luz de teses impessoais apenas resulta na promoção falsa à respeitabilidade e uma distorção mais sutil dos eventos.” (id)
Os exemplos das biografias de Stalin e Hitler, elaboradas, respectivamente, por Isaac Deutcher e Alan Bullock , ilustram esta limitação: quanto mais rica em detalhes técnicos, fundamentados por uma certa neutralidade axiológica, mas compromete-se a apreensão do essencial para a compreensão da totalidade humana e das suas obras. Se o leitor não intenta perder-se no detalhismo frio e impessoal, isto é, se quer ver "os eventos e as pessoas em sua proporção correta”, tem que recorrer “às biografias menos documentadas e factualmente incompletas.” (id)
A leitura de Hannah Arendt nos faz pensar sobre a tarefa hercúlea de debruçar-se sobre o registro historiográfico dos indivíduos. Passamos a ter a exata dimensão do seu significado e dos desafios. Se enveredarmos pelo gênero clássico, seremos capazes de captar a dimensão da totalidade humana do biografado? Se o detalhismo técnico do estilo inglês resulta na racionalização fria e impessoal dos fatos e da vida, como biografar sem cair no subjetivismo apologético e ou condenatório do biografado? Neste caso, é possível ser axiologicamente neutro?
Estamos convencidos de que a pesquisa e a elaboração textual estão eivadas de subjetividade. Contudo, também nos convencemos que a relação entre a objetividade e a subjetividade é dialética: uma está relacionada à outra. O que conseguirmos fazer será a síntese que expressa como realmente trabalhamos as contradições.
Nosso objetivo é traçar um esboço biográfico sobre Maurício Tragtenberg. Portanto, se abandonamos de antemão qualquer perspectiva de escrever uma biografia definitiva, ao estilo inglês, também temos claro que ficaremos muito aquém da biografia no sentido exato da palavra, mesmo que menos documentada e factualmente incompleta.
Oxalá, este primeiro passo ilumine a senda que trilhamos, no sentido oposto ao que Hannah Arendt denominou de gênero clássico biográfico! Oxalá nossa síntese não peque pelo exagero do tecnicismo frio e aparentemente impessoal, nem também pelo apologismo e condenações a priori! Só então faremos justiça aos esforços dos nossos mestres em compartilhar seus tesouros conosco (Pois que é o conhecimento senão o melhor tesouro que podemos encontrar? Quando nos apossamos dele, ninguém pode roubar-nos. Sua dádiva está justamente em que não nos custa dividí-lo. Ele nunca será só nosso!).!
Definindo identidade, alteridade e singularidade
Segundo Laing (1986: p.78), “não podemos fazer o relato fiel de "uma pessoa" sem falar do seu relacionamento com os outros.” A identidade é definida pela relação do indivíduo na relação com outros indivíduos, isto é, cada indivíduo se completa e se efetiva no relacionamento com os que estão à usa volta, em seu convívio. É na relação entre o EU e o OUTRO que se constrói a identidade do EU.
Mas não estamos tratando de indivíduos abstratos isolados do contexto social. Na relação entre os indivíduos há uma estrutura econômica que interage e influencia a efetivação da identidade. Parece-nos que Guattari, ao deslocar o foco da sua análise para a micropolítica, consegue, a exemplo de Foucault, oferece uma contribuição importante para a compreensão das relações entre os indivíduos e as estruturas sócio-econômicas.
Não esqueçamos que Guattari diferencia identidade e singularidade:
“A singularidade é um conceito existencial; já a identidade é um conceito de referenciarão, de circunscrição da realidade a quadros de referência, quadros estes que podem ser imaginários.” (GUATARRI & ROLNIK, 1986: p.68)
Enquanto a identidade diz respeito ao reconhecimento, a singularidade articula todos os elementos que costumeiramente constatamos quando definimos a identidade do indivíduo, isto é, como nos sentimos, nossos desejos, nossas atitudes em determinados contextos, em suma, tudo o que diz respeito ao nosso ego.
A singularidade, no sentido de Guattari, não é apenas diferente: é mais ampla. Se afirmo, “sou fulano e estou aqui”, apenas me identifico. A minha singularidade é muito mais complexa do que a afirmação de quem sou eu; ela resulta do cruzamento das várias formas do meu SER em relação às pessoas e às estruturas que me cercam.
Nas palavras de Guattari,
“a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável.” (id, pp. 68-69)
Neste sentido, a identidade, e é interessante observar, está relacionada a processos de identificação, desde um simples “meu nome é tal” até a sujeição a procedimentos policias, burocráticos, documentais etc.
Pensando em termos biográficos, a micropolítica de Guattari complexifica a tarefa do biógrafo. Aqui, trata-se de ir além da apreensão da identidade: é preciso assimilar a singularidade, isto é, as várias formas de ser do sujeito cognoscível. Por outro lado, suas formulações são um convite à reflexão crítica sobre a complexidade do real e do lugar da subjetividade neste. Esta refere-se tanto à dimensão sócio-econômica, quanto à dimensão das relações entre os indivíduos, ou seja, diz respeito a processos de singularização marcados e consubstanciados na subjetividade capitalista.
Este aspecto é essencial: além de considerarmos o biografado em sua relação com os indivíduos que o cercam (cuja relação, retomemos Laing, determina sua identidade), temos ainda que considerá-lo em relação às instituições, cujo caráter capitalista permeia sua singularidade e determina a sua subjetividade. Com efeito, a subjetividade burguesa envolve todos os aspectos da vida social em suas esferas econômicas, sociológicas, antropológicas, privada e pública, individual e coletiva.
Até que ponto conseguimos escapar às garras da subjetividade capitalista arraigada em todos os poros do nosso ser? Se o inimigo se infiltra em todos os interstícios da sociedade até que ponto a crítica ao status quo não se resume à retórica? Qual a exata medida da nossa coerência se escondemos, no e pelo discurso pretensamente revolucionário, o mais desvairado e pervertido desejo de dominar, de controlar o poder, de submeter as coisas e as pessoas aos desígnios burocráticos e particularistas? Em suma, é possível escapar à subjetividade capitalista?
São perguntas necessárias para delimitar claramente o ser contraditório que somos. Se somos assim, justamente pela humanidade que possuímos (pois só os deuses não erram; mesmo assim, temos divindades que representam o bem e o mal), e temos clareza que esta característica é própria do ser humano, então, o risco da apologia ou do maniqueísmo é menor.
Esta reflexão teórica permite-nos relacionar não apenas o indivíduo e as instituições que compõem a estrutura sócio-econômica da sociedade, mas também pensar o micro e sua relação com o macro. Se, como afirma ele, “a questão da micropolítica é a de como reproduzimos (ou não) os modos de subjetividade capitalista”, torna-se possível apreender as diversas formas de ser do indivíduo tanto no nível macro quanto no micro. (id)
Somos determinados pela relação com o meio: transformamos e somos transformados através desta interação. Assim, vemos a relação entre o individuo e a as instituições de forma dialética. É verdade que a subjetividade capitalista, (em outras palavras, seus valores, ideologia etc.), submete nossa singularidade e influencia nossa práxis. No entanto, não somos apenas reflexo do meio. A nossa capacidade em interagir com o meio, também nos dá as condições não apenas de compreendê-lo criticamente, mas também a possibilidade de nos libertarmos das suas amarras e transformá-lo.
É certo que esse poder é relativo: não escapamos de forma absoluta às artimanhas do inimigo. De um ponto de vista da subjetividade, somos todos burgueses: pensamos e agimos como tal; estamos imbuídos dos valores ideológicos que predominam em nossa sociedade.
Retomemos o conceito de identidade. Segundo Laing, “a primeira identidade social da pessoa lhe é conferida pelos demais. Aprendemos a ser quem nos dizem que somos.” (LAING, 1986: p.90). Se concordarmos com Laing, podemos, então, nos perguntar: quem é o OUTRO que dialoga com Tragtenberg e, nesta relação, determina sua identidade?
Mas não parece absurdo determinar o EU pelo que o OUTRO pensa dele? De fato, nossas ações são determinadas na relação com os outros. Desempenhamos papéis diferenciados de acordo com a influência daqueles com os quais nos relacionamos. Nossa auto-identidade é fortemente influenciada pelo que pensamos sobre o que o outro pensa sobre nós. É só na relação com o outro que pode ocorrer a complementaridade.
Porém, esta complementaridade nem sempre é genuína. Ela pode ser negativa, no sentido da anulação do EU em função do OUTRO. Como escreve Laing, “o OUTRO, por intermédio de suas ações, pode impor ao self uma identidade indesejada.” (id., p.78)
Neste sentido, só podemos conhecer plenamente o EU, neste caso, Maurício Tragtenberg, se conhecermos o que os outros pensavam e pensam dele. Mas podemos nos referir a um Tragtenberg (cuja identidade é dada pela relação com os outros) ou estamos diante de uma singularidade que sintetiza o cruzamento de vários Tragtenberg (Guattari)?
A questão complica-se ainda mais se considerarmos alguns elementos que caracterizam a vida e obra de Tragtenberg. A título de exemplo, destaquemos uma característica: o fato dele pertencer à etnia judaica. Isto o diferencia dos demais no sentido que lhe confere uma alteridade?
A resposta de Guattari, se bem o compreendemos, é negativa. Identificar as pessoas pelas características que as diferenciam é como colocá-las em oposição aos demais. Terminamos por construir dualidades que se excluem. Assim, definir os indivíduos pela cor, opção sexual, etnia etc., significa afirmar identidades não necessariamente complementares (Laing) ou singulares (Guattari).
Em situações como esta, Guattari considera que o termo mais adequado é “processo de singularização”. É mais apropriado nos referirmos às singularidades, “no sentido de que o que há são processos diferentes.” (GUATTARI & ROLNIK, 1986: p. 79) Afirmar as singularidades está relacionado à idéia de um devir, ou seja, “à possibilidade ou não de um processo se singularizar.” (id., p.74)
A afirmação étnica, de gênero, opção sexual etc., não é, para Guattari, “uma questão de identidade cultural, de retorno ao idêntico”, mas sim uma “problemática da multiplicidade e da pluralidade.” Só pelo processo de singularização que é possível às chamadas minorias romperem com as “estratificações dominantes”:
“Toda vez que uma problemática da identidade ou do reconhecimento aparece em determinado lugar, no mínimo estamos diante de uma ameaça de bloqueio e de paralisação do processo.” (id.)
A micropolítica seria uma forma capaz de evitar este bloqueio e de impedir que a afirmação da singularidade, sob determinadas circunstâncias, resulte na “reificação de um devir individual.” Esta forma singular de conceber a política, a partir das micro-relações, sem descartar a esfera macro-estrutural, consiste precisamente em “criar um agenciamento que permita, ao contrário, que esses processos (de singularização) se apóiem uns aos outros, de modo a intensificar-se.” (id., p.79
Isto, nas palavras esclarecedoras de Luiz Mott, e concordando com Guattari, significa reconhecer as pessoas pela qualidade que nos iguala: o fato de sermos humanos. Como escreve Mott:
“O que nós queremos é que as pessoas não se vejam como negros, não se vejam como homossexuais, não se vejam como mulheres; que as pessoas se vejam como pessoas humanas.” (Id., p. 76)
Contudo, sejamos francos: por mais que reconheçamos este ideal igualitário, a problemática se mantém. Que é ser negro, judeu, mulher ou homossexual em sociedades como a nossa? O negro reconhece-se como negro, o judeu enquanto tal e assim sucessivamente. A questão é: se eu não vejo o outro como uma singularidade, mas simplesmente como um membro da espécie humana, isto evita que ele se veja como uma singularidade? Por que não reconhecer que o OUTRO é uma alteridade singular que se diferencia de mim por ‘n’ características culturais? Por acaso isto impede que o veja como um igual no sentido de que pertencemos à mesma humanidade?
Na vida real, as respostas nem sempre são positivas. Goffman (1982) nos mostra como a sociedade estabelece meios que categorizam as pessoas de acordo com atributos que ela reconhece válidos para que sejamos identificados como normais. Se temos alguma característica considerada incomum ou anti-natural, então imputam-nos um estigma.
O negro, o judeu, o pobre, mas também o homossexual, a prostituta, o que tem deficiência corporal etc., sabem e sentem na carne o que é ser estigmatizado. Com efeito, a palavra estigma se origina entre os gregos na antiguidade. O povo que nos legou a filosofia e uma idéia de política democrática, usava este termo quando se referia
“a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, criminoso ou traidor – uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos.” (p. 11)
Na Era Cristã, o estigma se expressa através de sinais corporais que indicam que aquele indivíduo tem a graça divina ou simplesmente para identificar um distúrbio físico. É verdade que a anomalia corporal, ou uma simples característica que categoriza o indivíduo entre os que não são normais, induz ao estigma. Mas, como escreve Goffman, o termo “é mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal.”(Id.)
O termo estigma indica um atributo depreciativo, que pode ser visível ou imputado ao outro pelos que se consideram ‘normais’. Em casos como raça, religião, postura política-ideológica, classe social etc, o estigma expressa uma postura não apenas de animosidade, mas também percepção ideológica valorativa de quem se considera superior ou normal. O outro é categorizado como não natural, fora do comum.
O estigma também pode ser uma defesa assumida pelo estigmatizado. Aqui ele adota a postura de vítima e até procura tirar vantagens desta situação. O estigma funciona como um elemento subjetivo que o protege e justificava para os seus fracassos pessoais, determinados não necessariamente pela condição pela qual lhe estigmatizam.
Outros adotam o estigma. Então, assumem-se como normais: os demais é que não seriam plenamente humanos. Para Goffman,
“esta possibilidade é celebrada em lendas exemplares sobre os menonistas, os ciganos, os canalhas impunes e os judeus ortodoxos.” (Id., p.16)
Há ainda, os conformados: os que vêem a situação que gera o estigma como uma espécie de benção. Estes procuram aprender com a própria desgraça e usar este aprendizado de forma a compreender os outros e ajudá-los. É uma resposta sentimental fundada na experiência do sofrimento.
Em muitos casos, a tendência é que os estigmatizados agrupem-se, o que lhes dá o sentimento de pertencimento a uma comunidade de iguais. Os iguais defendem-se e estabelecem formas de reação aos que estigmatizam-nos. Por compartilharem o estigma, apóiam-se uns aos outros.
Mas, há também a possibilidade deste apoio vir dos informados, que na definição de Goffman, são:
“Os que são normais mas cuja situação especial levou a privar intimamente da vida secreta do indivíduo estigmatizado e a simpatizar com ela, e que gozam, ao mesmo tempo, de uma certa aceitação, uma certa pertinência cortês ao clã. Os “informados” são os homens marginais diante dos quais o indivíduo que tem defeito não precisa se envergonhar nem se autocontrolar, porque sabe que será considerado como uma pessoa comum.” (Id., p.37)
Os informados são as pessoas que trabalham diretamente com os estigmatizados: enfermeiras, psicólogos, funcionários treinados para agir diante de determinados públicos etc. Um segundo grupo de informados é composto por aqueles que se relacionam intimamente com o que sofre o estigma: seus amigos mais próximos, sua família etc. Nestes casos, compartilham o estigma.
O informado aparece como o normal na relação, ainda que compartilhe o estigma. O problema é que esta é uma relação muito complexa, tanto do ponto de vista do normal quanto do estigmatizado. O primeiro, poderá não conseguir superar a difícil tarefa de ver o outro como uma pessoa tão comum quanto ele, ou seja, de forma que o estigma não lhe tire o caráter de humano e o diferencie do gênero. Por outro lado, ao compartilhar o estigma, no caso da família e dos amigos mais próximos, pode não suportar as conseqüências de também ser estigmatizado.
Quem sofre o estigma também terá uma tarefa difícil. Como evitar o isolamento auto-protetor? Como não adotar uma postura agressiva e sectária diante do outro que lhe estigmatiza? Como lembra Goffman:
“O estigmatizado pode, também, questionar abertamente a desaprovação semi-oculta com a qual ele é tratado pelos normais, e esperar até apanhar o “informado”, que se autodesignou como tal, “em falta”, isto é, continuar a examinar as ações e as palavras dos outros até obter um sinal fugaz de que as suas demonstrações de aceitação do estigmatizado são apenas a aparência.” (id., p. 125)
Toda vez que a possibilidade do estigma se faz presente, isto é, quando o indivíduo encontra-se numa situação na qual sua aceitação social não é plena, a relação de alteridade é complexa. Pode ocorrer, por exemplo, que não lhe imputemos o estigma. Mas não nos iludamos: o signo que tal pessoa incorpora, como sua condição étnica, induz à estigmatizaçao social, ainda que na relação individual isto não ocorra.
Quando ocorre o estigma, temos um paradoxo: ao mesmo tempo que estigmatizamos, exigimos do estigmatizado que se comporte de tal maneira que demonstre que o atributo que gera o estigma não significa uma carga pesada que ele carrega, nem que é diferente de nós. Por outro lado, impomos um distanciamento que assegure que isto é verdadeiro:
“Em outras palavras, ele é aconselhado a corresponder naturalmente, aceitando com naturalidade si mesmo e aos outros, uma aceitação de si mesmo que nós fomos os primeiros a lhe dar. Assim, permite-se que uma aceitação-fantasma forneça a base para uma normalidade-fantasma.” (Id., p.133)
Em suma, por mais que eu como indivíduo normal ou informado recuse a ver no outro um ser cuja humanidade se diferencie por algum atributo qualquer, isto não anula o estigma. Embora o estigma manifeste-se em relações intra-indivíduos, marcados pelo preconceito e descrédito em relação ao outro, ele insere-se num contexto histórico-social. Segundo Goffman:
“A situação especial do estigmatizado é que a sociedade lhe diz que ele é um membro do grupo mais amplo, o que significa que ele é um ser humano normal, mas também que ele é, até certo ponto, “diferente”, e que seria absurdo negar essa diferença. A diferença em si, deriva da sociedade, porque, em geral, antes que uma diferença seja importante ela deve ser coletivamente conceptualizada pela sociedade como um todo.” (id., p.134)
Ainda que o fato de uma pessoa ser negra ou judeu não tenha a menor importância em si, no sentido que o vemos como um ser humano igual, o estigma já está socialmente dado e não podemos desconsiderá-lo. O mesmo vale para o estigmatizado. A alteridade intra e extra-grupo é uma componente da sua identidade.
Em geral, adotamos estigmas. Assim, alienamos o humano do seu SER e definimo-lo pela identidade/singularidade. Se o estigma manifesta-se nas relações entre os indivíduos, resta-nos analisar a relação entre os indivíduos e os grupos. Como os indivíduos reagem ao grupo e vice-versa? Há uma interação entre ambas as esferas? O indivíduo consegue manter sua autonomia em relação ao grupo ou é submetido a este?
Goffman nos ajuda a responder estas questões. Seu ponto de partida é o conceito de face:
“O termo face pode ser definido como o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reclama para si mesma através daquilo que os outros presumem ser a linha por ela tomada durante um contato específico. Face é uma imagem do self delineada em termos de atributos sociais aprovados.” (GOFFMAN, 1980: p. 76)
Vivemos como se fôssemos atores, cujo palco é a vida. Nosso objetivo é obter efeito sobre os outros, resguardar-se nas relações, controlar o ambiente, não colocar a face em risco. Tendemos à construção de imagens (papéis) que se adaptem aos diferentes contextos. Na esfera pública representamos vários papéis conforme as necessidades circunstanciais. Na esfera privada é como se fôssemos outra pessoa, outro EU. Em ambas dissimulamos. O indivíduo é cindido de acordo com as esferas da sua atuação.
Em outras palavras, não podemos ser o EU genuíno sob pena de ser ridicularizado ou cair em desgraça no grupo, ou seja, de perder a face. Há certas regras e procedimentos que devemos seguir. Isto é, para salvar sua face você deve se adequar à formalidade e informalidade do grupo. Na ânsia da segurança, nos termos de Goffman, salvar a face, representamos o tempo todo.
Essa dinâmica não dependem apenas da vontade individual, resulta de determinações sociais:
“A face dos outros e a própria face são construtos da mesma ordem; são regras do grupo e a definição da situação que determinam a quantidade de sentimento ligado à face e como esse sentimento deve ser distribuído entre as faces envolvidas.” (Id., pp.76-77)
Se, como afirma Goffman, estamos submetidos à coerção do grupo, que ocorre quando nos rebelamos ou não nos identificamos com o grupo, isto é, não obedecemos suas regras? No extremo, corremos o risco do isolamento, da exclusão do grupo. É simples: o grupo também tem determinadas expectativas em relação aos seus membros e, caso esses não correspondam, descarta-os. A vida está repleta de exemplos.
Os atributos do grupo e sua relação com a face nos transformam em nossos próprios carcereiros. “Trata-se de uma coerção social fundamental mesmo que todo homem goste de sua cela”, afirma Goffman. (Id., p.81) Parece-nos que o fundamento para o auto-aprisionamento em torno de uma imagem determinada pelo grupo e pela necessidade de salvar a face está na própria estrutura da sociedade cada vez mais competitiva. Submeter-se ao grupo é essencial para a sobrevivência e/ou ascensão social. Talvez esta seja a melhor forma de definir o que Goffman chama de face positiva.
Ao longo da sua exposição, Goffman deixa subentendida a idéia de que, ainda que tenhamos diferenças culturais, somos todos iguais em todos os lugares. Somos iguais, sobretudo, porque temos a mesma natureza humana universal Se somos tão iguais, então por que também nos igualamos na necessidade de dissimular, de adotar e representar papéis conforme as circunstâncias e as exigências do grupo? Isto não seria uma deformação do indivíduo? Afinal, como explicar os preconceitos, a submissão dos indivíduos à coerção do grupo se somos todos membros de uma mesma natureza humana universal?
O fato de sermos negros ou não, feminino ou masculino, heterossexual ou homossexual, judeus ou cristãos, não deveria ter tanto peso nas relações entre os indivíduos e entre estes e os grupos sociais. Mas tem! Não nos iludamos.
Imaginemos a relação de Tragtenberg com o judaísmo: o que significa ser judeu nas suas condições? Quais são estas condições? Ele se identifica com o grupo? De que forma? Pela assimilação ou através de procedimentos dissimuladores? Parece-nos que se isto não é determinante, também não é descartável. No entanto, no momento não temos respostas, só perguntas.
Nesta busca, Goffman nos aponta um caminho. Para ele:
“Se as pessoas têm uma natureza humana universal, não é a elas que se deve observar para explicá-la. Deve-se , em vez disso, observar o fato de que qualquer sociedade, se quiser ser uma sociedade, deve mobilizar seus membros como participantes auto-reguladores em encontros sociais. O ritual é uma forma através da qual se pode mobilizar o indivíduo para este propósito. Ensina-se o indivíduo a ser perceptivo, a ter seus sentimentos ligados ao self através da face, a ter orgulho, honra e dignidade, consideração, tato e uma certa aplomb. Estes são alguns dos elementos de comportamento que devem ser embutidos na pessoa, caso se queira fazer qualquer uso da mesma como um integrante, e são esses elementos que as pessoas, em parte, se referem quando falam de uma natureza humana universal”. (p. 107)
É uma resposta possível que coloca novas perguntas e indica novos caminhos. Como pesquisadores somos instigados a considerar, sem preconceitos, a contribuição teórica dos autores, confrontando-os e em relação a outros autores, construindo, assim, nossa síntese. Eles nos oferecem os meios teóricos que nos permitem uma primeira aproximação com as questões que nos colocamos. Façamos um esforço para analisa-las a partir dos elementos biográficos que temos.

As “Universidades” de Maurício Tragtenberg: um esboço biográfico
Tragtenberg, nasceu em 04 de novembro de 1929. Sua biografia, como ele explicita em seu Memorial [1] , tem uma dimensão histórica que o antecede:
“Minha biografia começa no interior do Estado do Rio Grande do Sul, onde meus avós aportaram na qualidade de camponeses pequenos proprietários, fugindo dos progroms, cultivando como unidade familiar uma agricultura de subsistência onde o excedente era vendido no mercado, em Erebango, que depois tornou-se Erexim e finalmente Getúlio Vargas.” (Memorial, p. 08)
Eis, em poucas palavras, a dimensão biográfica de Tragtenberg: seu pertencimento à descendência judaica liga-o à tradição cultural deste povo, sua história, caminhos e descaminhos. Povo perseguido desde os tempos de Moisés, os judeus foram constantemente forçados a deslocamentos territoriais sucessivos. Desde então, vagam pelo mundo em busca do porto seguro que lhes dê a oportunidade de, simplesmente, viverem em segurança e em paz.
É esta dinâmica que determina o fato de Tragtenberg iniciar sua biografia com os avós. Estes, emigraram para o Brasil para escapar às perseguições contra os judeus na Rússia Czarista. Aqui começa uma trajetória que marcará sua vida.
A ânsia de emigrar que tomou conta do povo judeu neste período, é determinada pela necessidade de sobrevivência diante da intensificação da violência sob o governo de Alexandre III. Os judeus russos, em seu êxodo, dirigiram-se principalmente para os Estados Unidos da América [2] ; uma pequena parte, emigrou para o Canadá, Inglaterra, África do sul e Austrália; foram poucos os que vieram para o Brasil e Argentina.
A história da imigração rural dos judeus para o Brasil, no período republicano [3] , começou com a iniciativa do Barão Maurício de Hirsch, francês de origem judaica, banqueiro em Bruxelas. Com a idéia de um projeto que ajudasse os judeus a se transferirem para terras mais pacíficas, imunes à intolerância religiosa ou étnica, o Barão de Hirsch criou, em 1891, uma organização para a instalação de colônias agrícolas em diversos países: a Jewish Colonization Association (conhecida como JCA).
Foi esta organização que financiou a emigração dos judeus russos para o Brasil e Argentina. O Barão Hirsch teve o apoio do capital de banqueiros e filantropos judeus como Lord Rothschild, Barão Goldsmid, Ernest J. Cassel, F. D. Mocatta, D. H. Goldschmidt, Salomão Reinach, Benjamin L. Cohen e o Barão de Philippson.
Para estabelecer as colônias agrícolas, a JCA adquiriu, em 1903, uma área de 5.767 hectares em Santa Maria, que foi a primeira colônia judaica no Brasil. Essa colônia foi chamada de Philippson, em homenagem a Franz Philippson, vice-diretor da JCA e presidente da Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au Brésil, que atuava no Rio Grande do Sul, . Em Philippson, a partir de 1904, instalaram-se os primeiros imigrantes judeus, oriundos da Bessarábia – região russa entre os rios Pruth e Dniester, banhada pelo mar Negro.
Na nova terra, os imigrantes receberam lotes de 25 a 30 hectares, com uma residência, instrumentos agrícolas, duas juntas de bois, duas vacas, carroça, cavalo e sementes, a um preço de cerca de cinco contos de réis, a serem pagos em prazos de 10 a 15 anos.
Pouco a pouco, chegaram outros imigrantes e a área territorial, com as novas aquisições da JCA, se estendeu de Philippson a Erebango a e Quatro Irmãos, regiões localizadas no Alto Uruguai, próximos a Marcelino Ramos, na fronteira com Santa Catarina.
Quem eram estas pessoas que chegavam ao novo mundo munidos de volumosa bagagem (basicamente roupas e livros religiosos), de dívidas a saldar com a JCA e repletos de esperanças e sonhos? Era gente simples: pequenos camponeses com profundos sentimento religiosos e apegados à tradição. São corpos que foram expostos a uma viagem exaustiva, desconfortante e miserável, amontoados na terceira classe dos navios que, após outra extenuante viagem por terra depois, transportados em caminhões do exército, eram "despejados nas matas de Erebango.” (Id., p.08) Corpos exaustos, mas plenos de sonhos e esperanças.
Schweidson, filho de imigrantes judeus, também oriundos da Rússia, e que colonizaram Philipson, relata esta saga: os sonhos, as lutas, e as decepções. Em seu livro autobiográfico, Judeus de bombachas e Chimarrão, podemos percorrer todo o trajeto percorrido pelo imigrante judeu russo: da seleção pela qual passava na localidade de origem, à viagem, chegada, as primeiras impressões e os primeiros tempos; tempos duros onde a religiosidade cumpria um papel importante para suporta-los com mais alegria e esperança.
Observamos em seu depoimento que as condições nas quais os camponeses imigrantes tinham que viver sua nova vida chegavam a ser piores do que as que tinham na Rússia:
“O primeiro contato com a realidade da sonhada terra da promissão foi duríssimo. Sentiram-se os imigrantes como que esmagados pelo imenso vazio. Decepcionados com o extremo primitivismo dos casebres, contrastando com o relativo conforto das antigas habitações na Rússia. (...) Das primeiras impressões a mais desagradável, para não dizer traumatizante, proveio do chão, ainda mole e úmido. Transmitia calafrios e angústias. Um chocante augúrio de miséria e de pressentimentos lúgubres.” (SCHWEIDSON, 1985: p.18)
Esta dura realidade era compensada pelo convívio, as atividades sociais-religiosas e pela hospitalidade dos demais habitantes da região, “gente destituída de qualquer preconceito”:
“A designação judeu ou russo ali jamais foi aplicada com sentido pejorativo ou de provocação. Nascido em Filipson, convivi desde a mais tenra idade com meninos judeus e cristãos. Nas constantes brincadeiras ou brigas, jamais ouvi uma palavra emanada de preconceitos. Nem mesmo nas disputadíssimas corridas de cavalo, freqüentemente resolvidas entre berros e tapas, nunca percebi laivos de malquerença racial ou religiosa. Este fenômeno abjeto, só vim a conhecê-lo, muito, muito mais tarde. Depois que o nazismo montou a sua formidável máquina de mentiras, redifundidas pelas sucursais integralistas.” (id., pp. 16 e 26) [4]
Em suas memórias autobiográficas, Tragtenberg faz breves comentários sobre as condições de vida dos colonos de Erebango. Supomos, no entanto, pelas características da imigração e até mesmo pelo fato de serem regiões territorialmente próximas, que os relatos de Schweidson guardam similitudes com a realidade dos judeus em Erebango.
Tragtenberg realça os vínculos ucranianos dos colonos e enfatiza a característica peculiar destes povoamentos: a base econômica fundada na unidade produtiva familiar. Em entrevista concedida, à pesquisadora e socióloga Carmen Lúcia Evangelho Lopes, do Centro de Memória Sindical, realizada em setembro de 1983, publicada postumamente em livro organizado pela Professora Sonia Alem Marrach, da Unesp, Campus de Marília, Tragtenberg, num dos raros momentos em que se permitiu falar sobre si mesmo, resgata suas memórias e descreve-nos suas origens:
“Os meus avós desenvolviam uma agricultura familiar. A família era uma unidade produtiva. E o interessante é o fato de desenvolverem esse tipo de agricultura e não se dedicarem ao comércio que, em geral, é a ocupação especializada dentro do grupo judaico. Isso teve implicações importantes, no sentido de que eram muito ligados à terra enquanto propriedade; davam à terra um valor afetivo e profundamente religioso. Uma coisa que me lembro até hoje é que quando eu era menino, o meu avô levantava toda manhã e perguntava: “O Messias já chegou?” Logicamente respondia que não.” (TRAGTENBERG, 1999: p.11)
Ao enfatizar esta procedência, podemos observar as primeiras influências que moldaram sua identidade. Como vimos em Laing, a identidade forma-se numa relação de alteridade. Podemos traduzir este conceito por minhas universidades, [5] termo muito utilizado por Tragtenberg sempre que se refere aos que influíram em sua formação política-intelectual.
As primeiras universidades de Tragtenberg são justamente as experiências vividas ainda na infância. O meio rural, a cultura judaica, a literatura russa, principalmente Tolstoi, e as influências política-ideológicas da revolução maknovista na Ucrânia [6] . Em sua biblioteca, os colonos tinham obras de Bakunin, Kropotkine, Malatesta, de historiadores do anarquismo e outros autores como Emma Goldman e Nestor Makno.
Pelo depoimento de Tragtenberg podemos observar que este cabedal cultural constituía parte do cotidiano dos colonos de Erebango. Estes tinham contato com as grandes idéias que agitavam o mundo e culminaram com a Revolução Russa “Segundo meus pais toda esta problemática era discutida pelos meus avós, com a audiência respeitosa destes”, registra. (Memorial, p. 10)
As referências tragtenberianas são os ideais maknovistas, manifestados na literatura e discussão sobre a realidade ucraniana diante da Revolução Bolchevique de 1917. Este elemento aparece em sua descrição sobre os primeiros desafios dos colonos que, diante da natureza virgem, “começaram uma experiência fundada no apoio mútuo e na solidariedade, fundados na experiência da revolução maknovista na Ucrânia, destruída pelo bolchevismo, em 1918.” (Id., p. 09; grifos no original)
A divisão do trabalho e dos produtos entre os colonos expressa o fator solidário observado por Tragtenberg:
“Os mais hábeis cumpriam inúmeros papéis, na agricultura, no ensino, na assistência aos doentes e no sepultamento dos mortos. Cultivava-se a terra, plantava-se e colhia-se distribuindo a cada família os gêneros, conforme o seu tamanho, se maior ou menor. As famílias cooperavam nos trabalhos de desmatamento, construção de barracões, abertura de valos e caminhos.” (id.)
Em outros trechos do seu relato, Tragtenberg mantém a linha de raciocínio, sempre enfatizando os fatores que exprimem uma concepção pedagógica libertária. Assim lemos:
“Os camponeses de Erebango, ajudados pela imprensa libertária aprimoraram o senso coletivo de vida e trabalho, aprendendo uns com os outros. Todos eram alunos e professores, e aprendiam ao mesmo tempo os segredos do cultivo da terra. À luz de vela, à noite, aprendiam e ensinavam português, espanhol, russo e esperanto.” (id.)
Tragtenberg frisa que estes colonos liam vários autores anarquistas e os clássicos da literatura russa. Esta influência seria concretizada na conquista de “auto-suficiência em alimentos” e na elevação e aperfeiçoamento educacional e “auto-aplicação dos princípios anarquistas no quotidiano de suas vidas.” (id., pp. 09-10)
Nestes relatos temos a fala do adulto Tragtenberg analisando sua vida retrospectivamente. É um adulto já calejado pelo tempo e com sua formação pedagógica, teórica-política construída e consolidada ao longo de toda uma vida. Como toda análise a posteriori, permeiam-se elementos interpretativos com os fatores da formação intelectual e política, além de contar com uma dose de confiança na memória.
Os fatos históricos precisam ser reconstruídos e analisados em seus aspectos pormenores, buscando-se a conexão entre eles. Esta é uma tarefa ainda por ser feita. É difícil definir até que ponto esta experiência influiu sobre o menino Tragtenberg.
De qualquer forma, este menino cresce neste ambiente, interagindo com ele e construindo sua subjetividade. É nesta realidade rural que Tragtenberg conhece as primeiras letras, estudando numa escola pública que funcionava num galpão:
“Entre arreios, cheiro de alfafa e um quadro negro, tive meu primeiro contato com o ler; escrever e contar.” (Id., p. 10)
Ninguém nasce libertário. Metaforicamente, podemos imaginar a vida de uma pessoa como o receptáculo de diversos afluentes, onde mesclam-se águas de várias origens, expressão das diversas influências geradas pela nossas universidades. Somos a síntese desta mistura.
O menino Tragtenberg que descobre o mundo pela leitura e educação teria outras universidades. Desintegrada a unidade familiar produtiva, inicia-se um novo estágio na vida de Tragtenberg: muda-se para Porto Alegre. Na capital gaúcha, em pleno Estado Novo, instala-se no Bomfim, gueto judeu retratado de forma singular na obra de Moacyr Scliar. [7]
Outros fatores explicam a mudança para a capital gaúcha: a má escolha da região quanto à fertilidade e os recursos da terra; as conseqüências da Revolução Federalista, cujas tropas em combate, tanto Chimangos quanto Maragatos, atacavam os camponeses, expropriando-os e matando suas criações (o que continuou mesmo depois de terminada a guerra). A decepção com as colheitas e a insegurança, levaram os colonos a se mudarem para Porto Alegre e a se envolverem com outras atividades.
Outro fator a considerar foi a preocupação com a educação dos filhos. Nas colônias só havia ensino primário, e os imigrantes tinham que enviar seus filhos para estudar nas cidades. Isto gerava um problema que afetava muitos: a necessidade de sustentá-los. Em pouco tempo, a capital gaúcha desenvolveu uma significativa comunidade judaica, considerada a terceira do país.
Com a ida para Porto Alegre, inicia-se o que Tragtenberg chamou de politização precoce. Leiamos o seu relato:
“Lembro-me que houve um dia “sem aulas”. Isto se deveu à visita que Plínio Salgado fez a Porto Alegre. Na frente do grupo escolar havia um posto de distribuição de publicações de Plínio Salgado e sobre o integralismo. A condição de “judeu”, numa sociedade nacional mais ampla, leva você a uma “politização precoce”.
Continua:
"Isso porque a visita de Plínio Salgado era sentida no bairro judeu como a visita de um anti-semita que preparara futuros progroms, iguais aos vividos na Rússia, daí o temor e os comentários terem se espalhado pelo bairro.” (id., p.11)
Interessante observar que Tragtenberg usa o termo judeu entre aspas. Como vemos, ele não escapa ao estigma étnico. Não há como negar que sua descendência judaica influi na formação da sua identidade. O problema a definir é a sua extensão. Como ele convive com esta situação? Como se vê enquanto judeu? Qual o peso que isto tem em sua vida?
Podemos vislumbrar uma resposta em seu próprio depoimento:
“A colônia judaica tem uma estratificação social interna, porque há judeu e há judeus. O pessoal da Hebraica, em geral, tem uma boa biblioteca etc. e tal. Mas a grande preocupação da maioria deles é jogar bridge. Esse é um tipo de judeu. Outro tipo é o pessoal que veio do campesinato ou de um proletariado de origem artesanal da Europa, do que se chama de pequena aldeia. (...) Veja bem, há uma ilusão: pensar que o grupo judaico é integrado. Não é verdade.” (TRAGTENBERG, 1999: p.18)
Tragtenberg faz uma diferenciação entre os judeus oriundos da Alemanha (que “têm, em geral, muito capital cultural”, é “mais ocidentalizado” e seus filhos geralmente haviam feito universidade); os judeus italianos e franceses, chamados Sefaradi (“o mais culto, o mais erudito de todos, o de maior capital cultural”); e o judeu que veio da Rússia e Lituânia (camponeses “realmente desprovidos”, cuja linguagem, o iídiche, tinha uma “pronúncia meio carregada”). O iídiche se tornou, segundo Tragtenberg, um “mecanismo de identificação do grupo.” No grupo judaico, “quando uma pessoa abria a boca, o sujeito já identificava de onde era, de que região vinha.” (Id., pp. 18-19)
Boris Fausto (1998: p. 34), nos fornece um dado que corrobora esta estratificação. Numa análise sobre a imigração em São Paulo, ele mostra como o “judeu ascendente”, que morava no Bom Retiro, muda-se para Higienópolis e também muda seu padrão de vida.
Com efeito, tratamos de sujeitos concretos, e não de indivíduos diluídos nas generalidades abstratas das análises teóricas. Tragtenberg não é o único a conceber a questão judaica desta forma. Desde que Marx escreveu A Questão Judaica, instaurou-se a polêmica. [8]
A posição de Tragtenberg sobre a questão judaica aproxima-se das análises marxistas. DEUTSCHER (1970), numa perspectiva marxista, pensando o judeu concreto, numa sociedade concreta e historicamente determinada, desenvolve a tese da identidade negativa, dada pela pressão do outro, pela alteridade fundada no estigma:
“O que vem recriando constantemente uma consciência judaica e injetando-lhe, sempre, nova vitalidade tem sido o hostil ambiente não-judeu que o cerca.” (p. 46)
Duetscher questiona as definições que se fundamentam em argumentos étnicos, religiosos e ou nacionalistas. Se a identidade do judeu não é dada por estes valores, qual será, então, o elemento que a define? A sua reposta é clara:
“Se não é a raça, que é então que faz um judeu? Religião? Eu sou ateu. Nacionalismo judaico? Sou internacionalista. Dessa forma, em nenhum dos dois sentidos sou judeu. Sou judeu, entretanto, pela força da minha incondicional solidariedade aos perseguidos e exterminados. Sou judeu porque sinto a tragédia judaica como a minha própria tragédia; porque sinto o pulsar da história judaica; porque daria tudo que pudesse para assegurar aos judeus auto-respeito e segurança reais e não fictícios.” (Id., p. 49)
Seria esta uma reposta tragtenberiana? Não sabemos. O que sabemos, por seu próprio depoimento, é que passou por uma crise de valores étnicos e religiosos, já na pré-adolescência:
“No começo, fiquei numa dúvida terrível sobre a religião. Porque ia à Sinagoga, tinha sido batizado na Sinagoga, aquele ritual todo. Achava estranho as mulheres em cima e os homens embaixo, mas até aí tudo bem, não tinha movimento feminista, naquele tempo, na sinagoga...” (Id., p.20)
Tragtenberg passa a ler pensadores cristãos como Alceu Amoroso Lima e trechos de Pascal; passou a achar que Cristo não “era tão mau assim.” A ruptura veio aos 14-15 anos. Ele havia encontrado a saída:
“Nem judeu e nem o cristão. Optei... pelo ateísmo...” (Id., p. 21)
Começara outra fase em sua vida. Neste processo, muito contribuiu o clima que cercava jovem Tragtenberg no bairro que morava e também a conjuntura política brasileira. A partir desta época:
“Todo o peso do judaísmo e da cultura judaica, quer dizer, da escola, da literatura e tudo mais, ficou em segundo plano. Por que? Porque o Brás era um bairro industrial, em primeiro lugar. Segundo, porque o Brás tinha realmente uma imigração italiana, espanhola e portuguesa.” (Id. p.23)
É preciso analisar a força e extensão desta ruptura. Será que a negação do judaísmo foi completa? Será que a saída encontrada livrou-o do estigma que a sociedade impõe aos judeus? Será que isto não provocou reações dos que partilham sua etnia? Terá influenciado sua vida posteriormente?
São muitas perguntas para as quais não temos respostas e talvez não sejam as perguntas certas. De qualquer forma, o fator judaico faz parte da sua formação e, neste sentido, constitui uma das suas universidades.
Logo depois da vista de Plínio Salgado à capital gaúcha, sua família muda-se para o Bom Retiro [9] , bairro da capital paulista:
“Fomos habitar à rua Tocantins, no bairro do Bom Retiro. Eu freqüentava o “Thalmud Tora”, uma escola judaica ortodoxa. De manhã estudava as matérias comuns do ciclo primário e à tarde o índice hebraico e comentários do Velho Testamento.” (Id., p.11)
Diferentemente do Brás, onde morou posteriormente, o Bom Retiro era, à época, predominantemente judaico, com forte presença dos italianos radicados no Brasil. Tragtenberg diferencia-os: não era o italiano burguês, “como é o francês judeu, o inglês judeu”:
“Estes não se consideram judeus; eram acima de tudo italianos. Isso dava problemas. A Lélia Abramo viveu a guerra na Itália , sentiu e viveu este problema. Primeiro, era considerada judia pelo sobrenome Abramo, este é um problema de judeu. E há também o problema de classe social. O judeu italiano é classe média alta. O caso do alemão é a mesma coisa.”(Id., pp.19-20)
No novo lar, Tragtenberg não escapa ao clima opressivo próprio do estado novo getulista. Era uma época em que a simples menção da palavra comunista poderia colocar o indivíduo em apuros. Será que o menino Tragtenberg tinha plena consciência da situação? O adulto Tragtenberg recorda-se de um certo cidadão que “vivia de pijama e fumava cigarros fulgor” e que morava com uma família judia de origem húngara. O cidadão desapareceu. O boato é que ele era comunista. (Id) Muito interessante Tragtenberg lembrar tal fato, inclusive com os detalhes: o cigarro e os hábitos do cidadão.
Com a morte precoce do seu pai, Maurício Tragtenberg, ainda na flor da idade, começa a trabalhar: era preciso ajudar no orçamento doméstico. Para ele, é neste momento que, à semelhança de Gorki, iniciou suas universidades. Nesta época, ele passou a freqüentar um bar na rua Ribeiro de Lima, onde tinha “comida barata e mesa sem toalhas.” Neste bar, ele tem contato com “trabalhadores de origem letã, lituana, russa, polonesa, muitos haviam, inclusive participado da Revolução Russa, haviam topado pessoalmente com Lenin, Trotsky, Zinoviev ou Bakunin.” Estes nomes marcariam a sua vida intelectual. (Id.)
É de se imaginar as conversas que jorravam nestes encontros, os temas discutidos. Tragtenberg, numa das características que o marca, a valorização do conhecimento considerado como senso comum, fez questão de enfatizar:
“Não eram “temas”de academia e sim expressões de relações sociais e políticas vividas.” (id.)
Quando a família Tragtenberg mudou-se para o Brás, na rua Santa Clara, rua Cachoeira e rua Catumbi, no Belenzinho, o Brasil entrara num novo período da sua história: caíra a ditadura varguista. Era uma época de efervescência política: em pauta a redemocratização do país, a constituinte, a legalidade do PCB.
Tragtenberg entra no Partido Comunista. Esta experiência, embora curta, marcou a sua vida. A professora Agueda Bittencourt escreve:
“Aos 16 anos uma experiência política marcará profundamente a sua história e se converterá numa de suas citações prediletas nas críticas à burocracia e ao exercício de poder no interior dos partidos políticos de diferentes vertentes ideológicas. Filiou-se ao PCB, fez trabalhos de base (colou cartazes, pichou muros, distribuiu panfletos) mas na discussão política as ordens eram ouvir e seguir. Maurício discordou e foi expulso com base no artigo 13 do Estatuto do Partido: "É proibido ao militante do partido qualquer contato direto ou indireto com trotskystas ou outros inimigos da classe operária.” (BITTENCOURT) [10]
Na fala de Tragtenberg, podemos observar as influências que determinaram sua entrada no PCB:
“Perto da minha casa, na rua Belém, o PCB alugara um quarteirão onde se instalara a sede de seu comitê estadual. (...) Foi lá que, na venda da esquina da rua Catumbi com a Ivinhema, encontrei um operário espanhol com o inevitável bigode, que, olhando minha aparência mirrada – na época o meu apelido social era Gandhi, tal a magreza – “Oh!rapaz, queres ficar forte? Entras para o PCB.” Contribuiu para a mesma tendência um sapateiro espanhol, meu vizinho, que entre um prego e outro na sola do sapatão discorria sobre reforma agrária, o que fora a guerra civil espanhola e a importância do PCB.” (Memorial, p.12)
A fala de Tragtenberg indica as influências, suas universidades, a alteridade que forja sua identidade. Este é um primeiro passo para compreender sua biografia e levantar questões.
Feita esta ressalva, vejamos quais as conseqüências desta breve passagem pelo PCB. A expulsão do PCB aproximou-o do revolucionário Trotsky, “lido e relido de cabo a rabo.” (BITTENCOURT) A proximidade com o trotskismo levou-o a estabelecer vínculos muito fortes com o jornalista Hermínio Sachetta. O professor Ricardo Antunes, relembra esta intensa relação, resgatando um artigo que Tragtenberg escreveu no jornal Fola de S. Paulo, quando da morte de Hermínio Sachetta:
“Sob influxo do ‘Velho’, líamos e fazíamos a crítica dos clássicos do bolchevismo, sem perder de vista que a realização de um projeto socialista não passa pela mera substituição de homens no poder do Estado, mas na ruptura com as formas de exploração e dominação existentes”. (FSP, 02.01.1982, citado por ANTUNES)
Para Ricardo Antunes, que conheceu profundamente Maurício Tragtenberg, inclusive dividindo uma sala com ele e o Professor Afrânio Mendes Catani, na década de 70, quando trabalharam na Fundação Getúlio Vargas, “foi neste universo que sua crítica societal e sua recusa da política institucionalizada cada vez mais confluíam com o ideário anarquista.” (ANTUNES)
No Brás, Tragtenberg teve contato com outra das suas universidades, uma das mais significativas: a família Abramo. A partir deste convívio começou a freqüentar a Biblioteca Municipal de S. Paulo Dormia no trabalho, trabalhava das sete às onze e depois ia para a biblioteca. Aos domingos visitava a família Abramo:
“A família Abramo foi a minha primeira universidade, no sentido de me informar. Todos liam o italiano e conheciam muito bem o idioma. E eu comecei a ler em italiano, a entrar em contato com a literatura, a cultura, o pensamento político italianos! E isso quer dizer, comecei a criar horizontes...” (TRAGTENBERG,1999: P. 28)
Com a família Abramo, Maurício “aprendeu muito da cultura italiana, inclusive a língua, e adquiriu uma visão crítica do bolchevismo.” (BITTENCOURT)
Na Mário de Andrade, Maurício começou a participar do chamado "grupo da Biblioteca" composto por Silvia Leser, Bento Prado Jr., Aracy Martins Rodigues, Carlos Henrique Escobar, Flávio Rangel, Antunes Filho, Maria Lúcia Monet, Leôncio Martins Rodrigues, Cláudio Lemos.
"Lia-se de tudo, de Aristóteles a Sprengler, passando por Fernando Pessoa, Sá carneiro e José Régio". (Memorial)
Foi uma fase muito importante para a formação de Tragtenberg. Vejamos alguns depoimentos que ilustra seu significado e o clima sócio-cultural da época. Comecemos pelo ensaísta Gilberto de Mello Kujawski:
“Jamais falei com Maurício Tragtenberg, mas o conhecia de vista, de longe, em livrarias do centro, em conferências, e na Biblioteca Mário de Andrade, ao tempo em que se chamava Biblioteca Pública Municipal, isso lá pelos idos de 50. Vejo, agora, pelo noticiário dos jornais, quando de sua morte, semana passada, que Maurício Tragtenberg, autodidata, completou sua formação estudando diariamente na biblioteca. Só agora compreendo porque ele estava sempre ali presente.
Consta que na biblioteca ele conheceu diversos intelectuais, entre eles os sociólogos Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes. Parece até que aquele edifício dá sorte e prestígio.
Tragtenberg era moço tímido, um tanto desajeitado, o ar modesto. Quase nunca terminava as frases, suspenso nas reticências. O que não impedia que manifestasse aparência estranhamente obstinada. Ironia e obstinação, alicerçadas em grande cabedal de estudos.” (KUJAWSKI)
O Professor Leon Frejda Szklarowski, nos dá uma idéia do contexto paulistano:
“Naquela época, São Paulo, terra da garoa, do frio gostoso, que tomava conta dos bandeirantes, nas noites de inverno, era uma cidade quase pacata, nenhuma poluição, conquanto lá tinha seus problemas, próprios de toda cidade que começava a inchar de gente que vinha de toda parte: da Europa, da Ásia, da África, enfim dos rincões mais distantes e também de todo o Brasil. Esse Brasil imenso, que guarda, em suas entranhas, toda riqueza do mundo, mas que paradoxalmente produzia filhos miseráveis e famintos. Povoava-se de gente que fugira do inferno que nem Dante imaginara. Da fome que nenhum homem jamais experimentara. Dos campos de concentração que jamais alguém pensara pudesse existir. Era o castigo na Terra. As labaredas queimando o ser humano como se fosse um monte de papel jogado fora. A maldade no seu mais elevado patamar.
Era gente que buscava um novo lar, uma nova vida, um pouquinho de paz, uma pitada de tolerância, um bocado de compreensão e, por que não, alguma solidariedade que lhe faltou no antigo berço. O Brasil era o lugar esplêndido que acolheu a todos, desde sempre. E São Paulo tinha tudo de que careciam os novos imigrantes ou migrantes. Até a ilusão de um paraíso perdido, lá longe, e que talvez pudesse recuperar no planalto paulista, onde as imensas fábricas sujavam as paredes e o céu com sua fumaça cinzenta e espessa, mas que se traduziam em mais empregos, vida mais confortável e melhor para os filhos, para a família, às vezes até partida, pela dor de uma guerra, da tragédia que despedaçou homens, mulheres e crianças, sem piedade, sem remorso, com muita dor.
Terminava a grande guerra que dizimou milhões de pessoas. O mundo ainda se ressentia dessa malvada empresa e parecia que o homem enfim poderia conceber uma Terra Prometida, sem guerras, sem violência, sem fome. (...)
Foi, naquele cenário, que conheci Maurício, rapaz pobre, esguio, às vezes triste, com o olhar longínquo em busca de algo que não conseguia alcançar. Não pudera estudar, em curso regular, como qualquer outro menino de sua idade, da classe média baixa, mas não deixava por menos. Estudava. Pesquisava. Meditava. Escrevia. Não dava trégua à sua inteligência aguçada, à sua imaginação fértil. Seu espírito inquieto e indomável conduzia-o para um universo até então desconhecido e, mergulhado nos livros, que lhe alimentavam a alma faminta e atiçava sua inteligência e a imaginação criadora, não se deixava dominar pelas adversidades. Pelo contrário, encontrava forças inesperadas e rompia o silêncio na busca desvairada da verdade, não importa onde estivesse.” (SZKLAROWSKI)
Perdoe-nos a longa citação. Optamos por fazê-lo devido ao fato de que estes depoimentos nos dão uma visão do OUTRO sobre Tragtenberg e, ao mesmo tempo, oferece-nos um quadro importante do contexto histórico-cultural de um período importante da sua vida. Enfatizamos esta fase porque ela foi realmente muito importante para a sua formação: “Foi o melhor período da minha vida”, afirmou. (TRAGTENBERG, 1999: p. 49)
A convivência na biblioteca com intelectuais que se tornariam referências nacionais, levou Tragtenberg a vivenciar outra das suas universidades: o Partido Socialista. Com a aproximação com os socialistas Tragtenberg conheceu a obra de Rosa de Luxemburgo e suas críticas aos "descaminhos do bolchevismo". Nesta fase, também conheceu a história da revolução camponesa liderada por Makno e também o que aconteceu com os marinheiros de Kronstad.
“A principio, eu achava o Partido socialista meio babaca, porque o programa era eleitoralista, o voto era tudo. Falava muito de democracia, mas não tinha operário, só intelectual e tinha um chamado grupo de centro. Esse grupo era uma espécie de cabeça socialista. Rogê Ferreira, Oliveiros Ferreira, Aziz Simão, O Febus Gicovate, que era o meu médico.” (Id., p. 31)
Maurício freqüentava os cursos do Partido Socialista. O contato com Aziz Simão, Paul Singer e Antônio Candido, entre outros, estimularam-no à leitura dos clássicos do marxismo. O tema da burocracia lhe fascinou.
Estas universidades abriram-lhe as portas para a Universidade formal. Através de Antônio Cândido, ficou sabendo da existência de uma lei federal que permitiu-lhe a apresentação de uma monografia à FFCLH da USP e que dava-lhe o direito de prestar vestibular para ingresso na Universidade. Este trabalho seria publicado sob o título Planificação: desafio do século XX. Na apresentação do livro, Antônio Cândido, escreve:
“Com honestidade e heterodoxia, longe de dogmas e preconceitos, o Autor circula entre fatos históricos, sociais e econômicos com uma formosa liberdade, manifestando a cada instante uma equação pessoal que não se quer omitir e que atua como presença fecundante.” (In: TRAGTENBERG, 1967)
Este seria o primeiro de uma série de livros acadêmicos, além de outros militantes e artigos em inúmeras revistas. Talvez o mais significativo seja justamente aquele que resultou da sua tese de doutorado, Burocracia e ideologia. Assim, descreve-o o professor Ricardo Antunes:
"No clássico Burocracia e Ideologia, seu trabalho de maior fôlego, apresentado como Tese de Doutorado na USP, em 1973, ofereceu um abrangente desenho histórico-crítico das formas da dominação burocrática. Alicerçado particularmente em Weber, Marx e Hegel, fez uma análise da burocracia, desde sua aparição no modo de produção asiático, até as corporações capitalistas modernas, bem como sua vigência na sociedade soviética, onde “a burocracia detém coletivamente a propriedade dos meios de produção e o monopólio do poder político. O proletariado não participa da direção da produção, está relegado às funções de pura execução”. Apesar de sua forte ancoragem weberiana, mostrou como este “modelo, para qual a burocracia se esgota como organização formal, não explica situações em que a burocracia não é agente dos detentores do poder econômico – como no capitalismo clássico – mas definida como um poder econômico e politicamente dominante”. As teorias de Henry Ford, Taylor e Elton Mayo foram também amplamente tematizadas. Em verdade, a questão da burocracia e do poder burocrático foi o verdadeiro leitmotiv da reflexão de Tragtenberg.” (ANTUNES)
Tragtenberg iniciou a kafkiana vida de professor dando aulas no magistério em Iguape. Casado, seu filho Marcelo havia nascido, mudou-se para Iguape, deixando a família com sua mãe. Na bagagem, toda a obra de Max Weber. Dava aulas o dia todo, no normal e no colégio. No pouco tempo que lhe restava ele aprofundou o estudo do pensamento weberiano.
Aqui temos um detalhe importante: em seu depoimento é possível assimilar seu método de estudo, que marcará toda a sua obra posterior e sua relação com os alunos e orientandos:
“Não é que comecei a ler simplesmente; vi que dava tempo para fazer muito mais, para pegar, por exemplo, a sociologia do direito e reconstituir os estudos sobre direito inglês, islâmico, judaico ou romano, a partir das indicações das notas de rodapé, paralelamente à leitura do próprio Weber.” (TRAGTENBERG, 1999: p. 59)
Esta experiência durou dois anos. Tragtenberg foi convidado a trabalhar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto. Em seu depoimento cita, um “grupo muito bom” que trabalhava nesta faculdade: Michel Lowy, Norman Potter e Wilson Cantoni. Eram os anos de 1962-63.
Nesta fase, ocorre a greve do magistério (1963). Embora afastado de Iguape, Tragtenberg, do ponto de vista legal, mantinha seu cargo, já que era concursado. Ele se envolve com a direção da greve, a primeira da categoria. Para ele, foi uma experiência incrível.
No ano de 1964, a barra pesou. Vieram as delações, as perseguições, o assalto à sua biblioteca pelos agentes do regime militar (“esse pessoal não espera o Diário Oficial, querem te enquadrar no ato; eles entram em tua casa e já começam a roubar livros”), e a demissão pelo Ato Institucional I. foi a fase mais difícil da sua vida. Perdeu tudo... (Id., p. 63)
Tragtenberg não suportou: entrou em colapso nervoso e internou-se. Talvez o mais admirável seja o fato de Tragtenberg ter conseguido escrever Burocracia e Ideologia nestas circunstâncias. Pressionado pelos prazos e as exigências burocráticas, saiu do hospital com o primeiro capítulo pronto.
Tragtenberg angariou muitas simpatias em sua carreira docente. Mas também muita antipatia. Muitos dos seus próprios pares não viam com bons olhos suas propostas e prática pedagógicas. Observamos este elemento em seus depoimentos, principalmente na fase kafikiana em que viveu nestes anos:
“Tinha um ódio diluído de todo meio universitário, em função de uma prática pedagógica que acabava com a hierarquia, que acabava com os critérios tradicionais de avaliação e redefinia a relação de poder em sala de aula, redefinia isso no cara a cara. Não era só escrever ou falar sobre, há uma prática colocada nisso. Naquele tempo, a PUC era reaça (...). O pessoal da USP já olhava a gente como uns carbonários. (...) O próprio meio universitário, por mais que se dissesse marxista, tinha muita resistência a esse tipo de prática pedagógica; era muito doutoral, muito professoral.” (Id., p. 67)
Tragtenberg era realmente instabilizante. Para nós, que tivemos o prazer de conhecê-lo como mestre e companheiro de caminhada, é difícil escrever sobre sua relação pedagógica com seus alunos e orientandos. Sempre há o risco de adotarmos, ainda que inconscientemente, o papel de discípulo – o que não faria jus à sua prática política-pedagógica. Recorremos ao depoimento do Prof. Evaldo Vieira, que teve um convívio profundo e duradouro com Tragtenberg, para compreendê-lo melhor e sem apologismo:
“Em poucas palavras, Maurício ensinava a ensinar, ensinava a ler, ensinava a pensar e ensinava a selecionar obras importantes e obras desimportantes e desnecessárias. Dava pouca ênfase na transmissão de informações e de conteúdos; dava muita ênfase na interpretação crítica e, sobretudo, na indicação de obras primordiais, mas imprescindíveis, conforme o interesse de cada um, independente do campo de estudo. Não existia área do conhecimento em que ele não trouxesse contribuição segura, válida, referente a qualquer época. Tal abrangência relativa a obras,a artigos, a edições raras ou não, em diferentes línguas, bem confirmada nos escritos, especialmente nos livros.” (VIEIRA,1999: p. 8)
Confesso que, neste momento, perco a objetividade. As palavras do Prof. Evaldo emocionam-me porque se concretizam na minha memória, como se estivesse revivendo-as. Mas, é possível ao sujeito abdicar de todo e qualquer sentimento ao escrever? Lembro-me das palavras de Hannah Arendt sobre os estilos de biografar e também do seu texto sobre a compreensão...
Bem, retomemos o fio da meada. Continua o Prof. Evaldo:
“A docência no ensino secundário e no ensino superior, por décadas, significou para Maurício Tragtenberg um lugar de trabalho e de estudo, mas não significou seu único lugar, talvez não tenha sido sequer o principal lugar de ação intelectual. Falou em muitos recintos deste país, tendo apenas como recompensa a convicção ética e política de mudá-lo, tirando-o do domínio das oligarquias, das tecnoburocracias e dos salvacionistas. Maurício Tragtenberg não cultivou discípulos, mas dividiu seus conhecimentos com outras pessoas; não se ligou a grupos de qualquer tipo, mas manteve sua opção política de vanguarda; não se sujeitou aos esquemas e aos modismos acadêmicos, mas procurou expor suas análises com originalidade; não se preocupou em conceder entrevistas capazes de arrumar sua vida e sua trajetória política e intelectual, o que não é comum nos dias que correm.” (Id., p. 9)
É este indivíduo concreto e datado historicamente que influirá a vida de muitos que conviveram com ele na PUC, na FGV, na UNICAMP e, também, no movimento sindical e popular. Analisar a extensão desta influência é mais uma tarefa a fazer. No entanto, como diz Tragtenberg, alguém que influenciou a
“mudança de paradigmas numa área e fecundar uma obra como a de Fernando Prestes Motta, José Henrique Faria, na teoria administrativa, Fernando Coutinho Garcia da UFMG, conseguiu seus objetivos. Isto porque, segundo os clássicos chineses, influenciar é ter poder.” (Memorial, p. 20)
Nesta trajetória, Tragtenberg, em vários momentos, reconhece a incalculável importância da sua família. Seria esta outra das suas universidades? Certamente que sim. Não temos condições, no momento, de analisar esta questão. Fiquemos com as palavras do próprio Tragtenberg que, melhor que ninguém, expressa seu reconhecimento:
“Em suma, os lados positivos dessa trajetória só foram possíveis de aparecer graças ao imenso apoio da minha companheira Beatriz.”(Id.)

Algumas considerações conclusivas...
Tragtenberg é uma daquelas pessoas que não se enquadra em rótulos. Quem teve o privilégio de fazer parte da sua história sabe que semelhantes adjetivos “nem sempre serviram para expressar seu lugar na academia, a sua estatura no campo da pesquisa nem mesmo para mostrar o trabalho que realizou para construir sua própria formação”. (BITTENCOURT)
Antunes, concordando com esta análise, escreve:
“Maurício Tragtenberg foi um intelectual herético. Foi, ao mesmo tempo, fortemente influenciado por Marx, Weber, pelos anarquistas e também por Trotsky. Disso resultou um autor criativo e agudamente crítico da sociabilidade contemporânea, agudamente anti-capitalista e contrário às formas de opressão anti-operária. Ele atava vivamente sua reflexão teórica ao solo societal brasileiro marcado.” (ANTUNES)
Vejamos outro depoimento que confirma os anteriores:
“Como sociólogo que fazia uma singular aproximação de Weber, com o marxismo e anarquismo, teve sempre como eixo a dimensão libertária, uma integridade pessoal e intelectual exemplares, um compromisso de luta jamais esmorecido, um empenho sem reservas na promoção da causa popular e democrática.” (FONTANA)
Estas peripécias teóricas de Tragtenberg deixa confuso os rotuladores de plantão. Mesmo a alcunha de anarquista não lhe cabe de forma ortodoxa: Como assinala Antunes, ele é “desconcertantemente heterodoxo”:
“Num instigante ensaio sobre as relações entre Marx e Bakunin, disse MaurícioTragtenberg: “...enquanto Marx estruturava uma obra crítica à economia capitalista em O Capital, não se encontrava na obra de Bakunin algo parecido, nem no conjunto das obras dos chamados ‘libertários’ que se opõem aos chamados autoritários”, como Rocker, Kropotkine ou Broockin”. Maurício Tragtenberg mostrava que a “estrutura centralizadora, autoritária e jacobina” estava presente na formulação de Bakunin e não naquela formulada por Marx. (“Marx/Bakunin” em Marx Hoje, Ed. Ensaio) (ANTUNES)
Em nossa opinião, as bases da formação intelectual de Tragtenberg, que constituem parte da sua biografia, são as suas universidades, os elementos que caracterizam a alteridade que constróem sua identidade (LAING). No transcorrer do nosso itinerário, procuramos identificar estas universidades e contextualizá-las.
Maurício Tragtenberg rompeu com todos os convencionalismos, a começar por sua formação escolar. Autodidata por imposição da situação financeira à época, não chegou a completar o primário. Chegou à Universidade sem passar por ela. Em vez dos bancos das salas de aula, freqüentou bibliotecas e grupos de intelectuais, muitos também autodidatas, com os quais exercitava o aprendizado solitário.
Sua história de vida é um exemplo de tolerância teórica-política; uma contribuição pedagógica aos que ainda acreditam na capacidade humana de se superar e, acima de tudo, de manter a esperança. Maurício é uma contribuição à compreensão, no sentido de Hannah Arendt, do homem e do mundo.

* Professor de Ciência Política na Universidade Estadual de Maringá e doutorando na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Notas:
[1] Escrito por ocasião do seu concurso para professor titular na Faculdade de Educação da Unicamp. Publicado inicialmente na Revista Pró-posições e, como homenagem póstuma, em Educação & Sociedade.
[2] As condições de vida dos imigrantes judeus nos Estados Unidos estavam muito longe do olhar idílico ou do propalado mito do judeu rico. GOLD (1985), num livro que se tornou um clássico, publicado originalmente em 1930, analisa de forma autobiográfica a realidade enfrentada por este povo nos EUA, mas precisamente em Nova York. Gold nos relata uma história pouco conhecida: a dos judeus pobres: Judeus sem dinheiro. Embora seu relato tome como referência um gueto em Nova York, esta é uma realidade universal (podemos observá-la em outros depoimentos). Como afirma GOLD (pp. 07-08), “pode-se contar a mesma história a respeito de uma centena de outros guetos espelhados pelo mundo afora.”
[3] A rigor, a imigração judaica para o Brasil tem início com a própria colonização portuguesa, desde o denominado descobrimento. CHIAVENATO (1985: p. 230), analisa como os judeus, cristãos-novos e judaizantes, por seu fazer e o saber, conseguem ter uma certa proeminência no Brasil colônia: “Os cristãos, herdeiros da tradição medieval, consideravam indigno o trabalho manual. Por isso, no Brasil-Colônia, os judeus tiveram grande importância: eram os carpinteiros, alfaiates, mecânicos, etc. Além de ser a minoria que sabia ler e escrever foram médicos, escrivães, financistas, geógrafos, boticários...” Em artigo publicado em 1966, na Manchete (Edição especial), por ocasião da visita do presidente de Israel ao Brasil, denominado, Historia dos Judeus no Brasil, Salomão Serebrenik, refere-se aos vários ciclos de imigração judaica, desde o período colonial. Mas, segundo ele, só “em 1911 é que teve verdadeiramente início a vida judaica no Brasil, em seu ciclo moderno. O marco seria a fundação, no Rio de Janeiro, da Sinagoga Bet Iacov. Embora estas informações sejam importantes para termos uma idéia do todo, nossa atenção centra-se na colonização judaica no sul brasileiro, mais especificamente, no Rio Grande do Sul.
[4] Schweidson relata com mais pormenores esta fase em Saga Judaica na Ilha do Desterro (1989): um painel sobre os acontecimentos mais marcantes nos anos da II Guerra Mundial na atual Florianópolis.
[5] Tragtenberg toma o termo emprestado de Maksim Górki. “Minhas Universidades” é parte da trilogia autobiográfica de Gorki, escrita entre 1912-1923. As outras obras são: “Infância” e “Ganhando meu pão”.
[6] Esta experiência revolucionária é relatada em MAKHNO, Nestor. A Revolução Contra a Revolução - São Paulo, Cortez Editora, 1988
[7] A referência é de Tragtenberg.
[8] CLEMESHA, Arlene (1998), em Marxismo e Judaísmo: História de Uma Relação Difícil, analisa toda esta trajetória.
[9] REIBSCHEID, Samuel, no livro Breve Fantasia (1995), contextualiza a maior parte da sua narrativa, neste bairro. Muito interessante para compreender o locus no qual se desenrola a trama tragtenberiana.
[10] Referência só ao autor indica publicação na Internet. (ver bibliografia).

Bibliografia
ADORNO, Theodor. (1995) Educação após Auschwitz In: Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra.
ANTUNES, Ricardo. A perda de um intelectual herético. In: http://www.nobel.com.br/cdmt
----------. A perda de uma formosa liberdade. In: http://www.nobel.com.br/cdmt
ARENDT, Hannah. (1993) Compreensão e política In: A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, p.39-53..
----------. (1999) Homens em Tempos Sombrios. São Paulo, Companhia das Letras.
BITTENCOURT, Agueda B. Tragtenberg, o tamanho da perda. In: http://www.nobel.com.br/cdmt
CHIAVENATO, Júlio José. (1985) O Inimigo Eleito: Os Judeus, o Poder e o Anti-semitismo. Porto Alegre, Mercado Aberto.
CLEMESHA, Arlene. (1998) Marxismo e Judaísmo: História de Uma Relação Difícil. São Paulo, Boitempo editorial.
DEUTSCHER, Isaac. (1970) O judeu não-judeu e outros ensaios. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
FAUSTO, Boris. (1998) Imigração: cortes e continuidades. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. (Org.) História da Vida privada no Brasil. São Paulo, Compnhia das Letras, pp. 13-62.
FONTANA, Remy J. Maurício Tragtenberg: Um Tributo.In: http://www.nobel.com.br/cdmt
GADOTTI, Moacir. (1987) Pensamento pedagógico brasileiro. São Paulo, Ática.
GOFFMAN, Erving. (1980) "A elaboração da face - uma análise dos elementos rituais na interação social" In: FIGUEIRA, Sérvulo Augusto (org.). Psicanálise e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves Ed., (p. 76-114).
----------. (1982) Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro, Zahar Editores.
GOLD, Michel. Judeus Sem Dinheiro. Rio de Janeiro, Record. (A primeira edição, em língua inglesa, é de 1930)
GORKI, Máximo. (1987) Minhas Universidades. Rio de Janeiro, Ediouro.
GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. (1986) Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, Vozes.
GUATTARI, Félix. (1981) Revolução Molecular. Pulsações políticas do desejo. São Paulo, brasiliense.
KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A turma da Biblioteca. In: http://www.jt.com.br
LAING, Ronald D. (1986) Identidade Complementar. In: O Eu e os Outros- O Relacionamento Interpessoal. Petrópolis: Vozes.
MAKHNO, Nestor. (1988) A revolução contra a revolução. São Paulo, Cortez.
REIBSCHEID, Sammuel. (1995) Breve Fantasia. São Paulo, Scrittta.
SCHWEIDSON, Jacques. (1985) Judeus de Bombachas e Chimarrão. Rio de Janeiro, J. Olympio.
----------. (1989) Saga Judaica na Ilha do Desterro. Rio de Janeiro, J. Olympio.
SILVA, Antonio Ozaí. (1999) Maurício Tragtenberg e a Pedagogia Libertária. In: Lutas Sociais, nº 6, São Paulo, NEILS; PUC/SP.
SILVA, Cleodon. 1979: Várias Trajetórias e Uma Vertente. A Luta Libertária. In: http://www.nobel.com.br/cdmt
SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Maurício Tragtenberg. In: http://www.nobel.com.br/cdmt
TRAGTENBERG Maurício. Memorial. In: Educação & Sociedade – Ano XIX – Nº 65 – Dezembro de 1998. Campinas: Cedes, 1988, , pp. 07-20.
----------. Educação e política: a proposta integralista. In: Educação & Sociedade – Ano III – Nº 8 – Janeiro de 1981. São Paulo, Cortez, pp. 95-107.
----------. Francisco Ferrer e a Pedagogia Libertária. In: Educação & Sociedade – Ano II – Nº 1 – Setembro de 1978. São Paulo, Cortez, pp. 17-49.
----------. Marx/Bakunin: ou marxismo e anarquismo. In: Educação & Sociedade – Ano VIII – Nº 23 – Abril de 1986. São Paulo: Cortez, pp. 84-103.
----------. O conhecimento expropriado e reapropriado pela classe operária: Espanha 80. In: Educação & Sociedade – Ano II – Nº 7 – Setembro de 1980. São Paulo: Cortez, pp. 53-62.
----------. (Org.) (1981) Marxismo Heterodoxo. São Paulo, Editora Brasiliense.
----------. Memórias de um autodidata no Brasil. (1999). Organizado por Sonia Alem Marrach. São Paulo: Escuta.
----------. (1967) Planificação: Desafio do século XX. São Paulo, Editora Senzala.
----------. (1990) Sobre Educação, Política e Sindicalismo, 2ª edição. São Paulo, Cortez Editora/Autores Associados (Coleção Teoria e Prática Sociais)
----------. Rosa Luxemburgo e a crítica dos fenômenos burocráticos. In: LOUREIRO, Isabel Maria e VIGEVANI, Tullo. (1991) Rosa Luxemburgo: A recusa da alienação. São Paulo, Editora da UNESP.
VIEIRA, Evaldo. Para Maurício Tragtenberg. (1999) In: Educação & Sociedade – Ano XIX – Nº 66 – Abril de 1999. Campinas: Cedes, pp. 08-09.


http://pt.wikipedia.org/wiki/Alteridade acesso no dia 06/2008

Alteridade
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Ir para: navegação, pesquisa
Alteridade (ou outridade) é a concepção que parte do pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende de outros indivíduos. Assim, como muitos antropólogos e cientistas sociais afirmam, a existência do "eu-individual" só é permitida mediante um contato com o outro (que em uma visão expandida se torna o Outro - a própria sociedade diferente do indivíduo).
Dessa forma eu apenas existo a partir do outro, da visão do outro, o que me permite também compreender o mundo a partir de um olhar diferenciado, partindo tanto do diferente quanto de mim mesmo, sensibilizado que estou pela experiência do contato.
A “noção de outro ressalta que a diferença constitui a vida social, à medida que esta efetiva-se através das dinâmicas das relações sociais. Assim sendo, a diferença é, simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito” (G. Velho, 1996:10)
“A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos ‘evidente’. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não tem realmente nada de ‘natural’. Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única.” (F. Laplantine, 2000:21)
Tal tema foi estudado ainda por Tzvetan Todorov em seu livro A conquista da América - a questão do outro, onde é estudado no contexto do descobrimento e a conquista da América no primeiro centenário após a primeira viagem de Colombo, basicamente no século XVI. Há ainda, contudo, menções a essas relações de alteridade em obras anteriores a Todorov, como por exemplo, em Michel de Montaigne, um dos autores dos textos a serem cruzados:
"Mas, para retornar a meu assunto, acho que não há nessa nação nada de bárbaro e de selvagem, pelo que me contaram, a não ser porque cada qual chama de barbárie aquilo que não é de costume; como verdadeiramente parece que não temos outro ponto de vista sobre a verdade e a razão a não ser o exemplo e o modelo das opiniões e os usos do país em que estamos".[1]
Apontamentos podem ser feitos não só durante o processo de conquista e colonização da América, mas em toda a história do contato entre diferentes povos e culturas. Por exemplo, pode-se partir desde Cortés, que procurou conhecer o outro, buscando intérpretes e estabelecendo táticas de guerra. Surge aqui uma personagem curiosa: Malinche. Ela foi dada por Montezuma aos espanhóis e acaba sendo fundamental para o processo de conquista promovido por Cortés, pois sabia a língua dos maias e astecas e posteriormente também o espanhol. Para os indígenas é o símbolo da traição, para outros é o símbolo da mestiçagem, porque Malinche não é somente bilíngüe, mas também "bicultural", e adotou inclusive a ideologia do "outro". Deste modo, a humanidade do outro só foi concebida quando integrada à cultura do "eu", ocorrendo uma assimilação, uma integração da cultura do "outro" à européia, no caso.
Avançando cronologicamente na História, é possível ainda encontrar relatos de relações de alteridade no texto "Descobrindo os brancos", de autoria de um índio ianomâmi chamado Davi Kopenawa Yanomaqui, já no século XX. Nele, as relações de alteridade mais uma vez são descritas, desta vez devido à invasão de suas terras, no estado brasileiro do Amazonas, por milhares de garimpeiros entre os anos de 1987 e 1990.
Assim, a análise crítica dessas obras pode levar à indagação de que, por vezes, os estudos históricos possam ser em parte o reflexo do modo de agir e pensar dos europeus na época da conquista, que tomaram a sua sociedade, os seus valores como o "correto" e o "modelo" a ser seguido pelos "outros".

Postado por Aderlan Letras às 18:00 0 comentários Links para esta postagem

Nenhum comentário:

Postar um comentário